“...por mim dispensava a missa mais logo, mas a tua mãe acredita que da quantidade de missas depende a qualidade da tua vida no céu e não quero fazer-lhe a desfeita.
para mim, a tua vida no céu é a vertigem azul da felicidade e da paz, não depende de missa nenhuma, de padre nenhum, és livre para vogar pelos espaços siderais e não imaginas como, por vezes, te invejo a facilidade com que circulas em torno da luz.
não foi sempre assim e tu sabes. houve momentos em que desejei roubar-te o azul e privar-te da paz etérea do céu, tal era a vontade de te trazer novamente para o mundo dos vivos, de novo para dentro da minha carne, de te ouvir, como sempre, a respirar ao meu lado e te ver a dar colo aos filhos, pelo menos até que ficassem mais altos... mas, entretanto, passaram dez anos e cada vez mais me convenço de que ter saudades dos que partiram é puro egoísmo dos que ainda cá estão. coisa de humanos,
tu sabes,
mas que deixa de ter cabimento quando nos libertamos do corpo e do peso e transbordamos para fora do mundo comum.
saudades para quê?
dizes tu,
saudades do quê se vamos voltar a estar juntos?
a verdade é que há quem faça da morte a derradeira paragem do tempo, quem chore uma ausência como se fosse para sempre, quem não se convença de que morrer, como dizia o poeta, é só não ser visto.
é o título do meu próximo livro, sabias?
é claro que sabias, “morrer é só não ser visto”, é o título do livro, o mesmíssimo verso que, há dez anos atrás, escolhi para a capa do livro da tua missa do trigésimo dia.
nessa altura, ir à missa ainda era importante, como se ficasse mais perto de ti, mas agora já não. agora as missas em tua honra nos dias vinte e nove de junho não fazem sentido, nem sequer quando há um número redondo, quando faz uma década da tua morte.
dez anos, meu querido, DEZ anos!, os nossos filhos enormes, ela com quinze e ele quase com doze, agradeço todos os dias termos podido fazê-los a meias, são lindos!, aquela raiva de me teres deixado sozinha diluiu-se há que tempos,
tu sabes.
sabes bem que reparo, todos os dias, que não nos privámos da companhia um do outro, apenas já não nos tocamos,
é tudo.
a frequência de amor em que vibras é demasiado subtil para a densidade que habito. por mais que me esforce por elevar a alma à efervescência da tua, estou sempre cercada de corpo.
achei graça, por isso, ao facto de me teres posto o braço por cima dos ombros na quarta-feira passada, ao tom comovido com que vieste da luz para me ver, à prova irrefutável com que quiseste brindar-me, cumprindo, enfim, a promessa de há muito.
“o primeiro a morrer tem de voltar para contar.”
já tinhas voltado outras vezes, eu sei, mas, nesse dia, quiseste que a prova fosse mais do que a premonição do costume, um sorriso no espelho, uma brisa, um ruído e foi mesmo, nesse dia foi muito mais do que isso e tive a certeza de que estás vivo.
dez anos depois de um camião destravado e guiado por um senhor cujo apelido era anjos e que não via de um olho te ter engolido; dez anos depois de me ter ajoelhado na estrada, ao teu lado, e de te ter implorado
não morras
não morras
não morras..."
Inês de Barros Baptista
In “morrer é só não ser visto”
para mim, a tua vida no céu é a vertigem azul da felicidade e da paz, não depende de missa nenhuma, de padre nenhum, és livre para vogar pelos espaços siderais e não imaginas como, por vezes, te invejo a facilidade com que circulas em torno da luz.
não foi sempre assim e tu sabes. houve momentos em que desejei roubar-te o azul e privar-te da paz etérea do céu, tal era a vontade de te trazer novamente para o mundo dos vivos, de novo para dentro da minha carne, de te ouvir, como sempre, a respirar ao meu lado e te ver a dar colo aos filhos, pelo menos até que ficassem mais altos... mas, entretanto, passaram dez anos e cada vez mais me convenço de que ter saudades dos que partiram é puro egoísmo dos que ainda cá estão. coisa de humanos,
tu sabes,
mas que deixa de ter cabimento quando nos libertamos do corpo e do peso e transbordamos para fora do mundo comum.
saudades para quê?
dizes tu,
saudades do quê se vamos voltar a estar juntos?
a verdade é que há quem faça da morte a derradeira paragem do tempo, quem chore uma ausência como se fosse para sempre, quem não se convença de que morrer, como dizia o poeta, é só não ser visto.
é o título do meu próximo livro, sabias?
é claro que sabias, “morrer é só não ser visto”, é o título do livro, o mesmíssimo verso que, há dez anos atrás, escolhi para a capa do livro da tua missa do trigésimo dia.
nessa altura, ir à missa ainda era importante, como se ficasse mais perto de ti, mas agora já não. agora as missas em tua honra nos dias vinte e nove de junho não fazem sentido, nem sequer quando há um número redondo, quando faz uma década da tua morte.
dez anos, meu querido, DEZ anos!, os nossos filhos enormes, ela com quinze e ele quase com doze, agradeço todos os dias termos podido fazê-los a meias, são lindos!, aquela raiva de me teres deixado sozinha diluiu-se há que tempos,
tu sabes.
sabes bem que reparo, todos os dias, que não nos privámos da companhia um do outro, apenas já não nos tocamos,
é tudo.
a frequência de amor em que vibras é demasiado subtil para a densidade que habito. por mais que me esforce por elevar a alma à efervescência da tua, estou sempre cercada de corpo.
achei graça, por isso, ao facto de me teres posto o braço por cima dos ombros na quarta-feira passada, ao tom comovido com que vieste da luz para me ver, à prova irrefutável com que quiseste brindar-me, cumprindo, enfim, a promessa de há muito.
“o primeiro a morrer tem de voltar para contar.”
já tinhas voltado outras vezes, eu sei, mas, nesse dia, quiseste que a prova fosse mais do que a premonição do costume, um sorriso no espelho, uma brisa, um ruído e foi mesmo, nesse dia foi muito mais do que isso e tive a certeza de que estás vivo.
dez anos depois de um camião destravado e guiado por um senhor cujo apelido era anjos e que não via de um olho te ter engolido; dez anos depois de me ter ajoelhado na estrada, ao teu lado, e de te ter implorado
não morras
não morras
não morras..."
Inês de Barros Baptista
In “morrer é só não ser visto”